top of page
Foto do escritorAlex Fraga

Conto - O Cego das Vassouras, por João Francisco Santos da Silva



Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "O Cego das Vassouras".


O cego das vassouras


Dizem que toda lenda urbana tem um pingo de verdade. Começa a partir de um episódio insignificante, porém verídico. Com o passar do tempo, depois de muitas e muitas vezes recontados os fatos se tornam mais impressionantes do que realmente foram. O cego das vassouras é um desses personagens que entrou para o anedotário popular. Difícil passar por aquele trecho da cidade sem lembrar no que lá ocorreu, ou dizem ter ocorrido ali, décadas atrás. História antiga que daquele tempo não sobrou nem a farmácia, nem o bueiro, só a indicação imprecisa do local, que também se modifica de acordo com quem conta a história. O incidente pode ter sido na atual Brigadeiro Franco, ou ainda, na Getúlio Vargas. Contudo, o local é um mero detalhe, e não interfere no trágico desfecho ocorrido.

Tudo começou na distante e fria Ucrânia no período stalinista. Sua mãe fora uma sobrevivente do Holodomor, como ficou conhecida a grande fome que assolou o país entre 1932 e 1933. A adolescente, órfã e desnutrida, emigrou para o Brasil pouco antes do início da segunda guerra mundial. Mas, mesmo depois de idosa não conseguia esquecer o trauma vívido em sua terra natal e costumava contá-lo às pessoas mais próximas. Ela sempre começava a história de sua vida com a seguinte frase: — “Coma um cachorro se estiver com fome”... Frase que simbolizava todas as privações por que deve ter passado durante os anos difíceis de sua juventude.

Quando chegou ao Brasil foi morar em Curitiba, no Bigorrilho. Bairro que naquele tempo ainda possuía inúmeras chácaras e abrigava muitos conterrâneos ucranianos. A mãe sobreviveu à fome, mas ficou com sequelas. E somente depois de três abortos espontâneos conseguiu dar à luz a um pequeno prematuro. Menino quase perfeito, só lhe faltava a visão. Criança simpática e sorridente, vivia com bom humor. Desde muito jovem ele se guiava pelos cheiros e pelos sons. Sempre quando sentia um aroma diferente, com interesse e curiosidade queria saber de onde vinha a fragrância. Brincando, dizia que seu sonho era um dia ter o faro melhor que o de um cão de caça. Sistemático e perfeccionista, se desafiava ao comparar as fragrâncias de rosas de diferentes cores para tentar reconhecê-las. Também nutria um apaixonado interesse pelas palavras. Da sonoridade, ao seu significado e sinônimos, tudo nelas lhe interessava. Como não sabia Braille, conheceu os livros ouvindo as leituras pela voz de seu primo e melhor amigo. Sua vida mudou quando o primo ganhou um dicionário Aurélio do tio. Desse dia em diante, a diversão era ouvir

as palavras e memorizar os seus significados e respectivos sinônimos. De tanto ouvir seu primo, acabou levando o dicionário inteiro para dentro de sua cabeça. Outra de suas diversões preferidas era fazer trocadilhos com palavras que lhe falavam. Assim como: “Qual o contrário de papelada. É pá vestida”. Nem sempre eram engraçados, mas vindas da boca do menino cego eram bem recebidas pela audiência de parentes e vizinhos.

Depois de adulto, para sobreviver o cego tornou-se vendedor de vassouras de piaçava. Vendia na rua e de porta em porta. Grande parte de suas vendas se dava mais por sua simpatia e capacidade de convencer o freguês, que pela utilidade do produto. Do Bigorrilho, passando pela Água Verde até o Prado Velho na região mais central da cidade, todos o conheciam como o cego das vassouras. Possuía uma rígida rotina de trabalho. Diariamente saía cedo e só voltava para casa no início da noite. Costumava carregar 20 vassouras sobre o ombro direito, e com a mão esquerda livre se apoiava no ombro do primo que o guiava pelas ruas. Percorria sempre o mesmo trajeto por ele já memorizado. Ia pela rua Bigorrilho até chegar na Padre Anchieta, virava à esquerda e chegando na antiga rua Montevideo, descia a ladeira que dava na pracinha do velho Atlético, que naquela época ainda era escrito sem a letra agá no meio. Em geral, passava boa parte do dia sentado num banco da praça ou circulando nas redondezas do estádio Joaquim Américo e no final da tarde retornava pelo mesmo caminho. Para anunciar sua presença na área, o cego utilizava alguns bordões. E a vizinhança quando ouvia seu grito, já sabia que era o cego das vassouras quem estava passando.

— Olha a vassoura de piaçava! Vassoura da boa! Não solta farpas. Essa não é à toa! Devia repetir essa frase umas trezentas vezes por dia. Mas pelo jeito funcionava, e conseguia viver disso.

Certa vez o cego acordou meio gripado, com o nariz congestionado e a sensação de pressão no ouvido. E ainda para piorar a situação, o seu primo comeu alguma coisa que não lhe fez muito bem e amanheceu com um desarranjo intestinal. Se houvesse seguido sua intuição, naquele dia teria ficado em casa descansando. Mas como não a seguiu, lá foram os dois primos. No trajeto tiveram que parar algumas vezes para o primo guia se aliviar. A última dessas paradas foi bem em frente à uma farmácia. Enquanto o primo corria para uma privada próxima, o cego ficou esperando-lhe em frente à drogaria. O cego estava bastante desconfortável, pois, com o nariz e os ouvidos trancados se sentia mais vulnerável. Devido a congestão gripal, naquele dia ele não diferenciaria o cheiro do café coado na hora de um bacalhau acebolado saindo do forno. Se um cachorro latisse confundiria com o grito de um torcedor do “Furacão da Baixada”. Foi aí que enquanto o cego esperava pelo primo, escutou alguém falar rispidamente:

— Que droga. Que merda é essa!

O cego pensou que homem que gritava com ele fosse o dono da farmácia, e o estivesse espantando dali. Já estava acostumado a ser maltratado com aspereza e discriminação. Por isso não estranhou ser expulso da frente da farmácia. Mas, resolveu enfrentar a situação com o bom humor de sempre. Decidiu dar uns passos para o lado e fazer uma de suas piadas, zombando da situação. Então, com o raciocínio rápido, fez logo uma associação de odor com um trocadilho de palavras. Droga, drogaria, igual farmácia. Aqui está fedendo como cocô de gato. Perfeito pensou ele.

— Se não for remédio vencido, é cocô de gat... Não conseguiu completar a frase porque antes disso caiu num bueiro que estava com a boca destampada.

O transeunte, que não trabalhava na farmácia, havia visto o cego parado sozinho ao lado do bueiro, e no susto, ao invés de alertá-lo do perigo que corria, falou a asneira que disse. Agora estava desconsolado com o trágico acidente.

— Eu tentei avisá-lo! Mas ele não entendeu! E ainda caminhou para o buraco!

Infelizmente o cego da vassoura, figura tão popular na cidade, desde aquele trágico dia desapareceu das ruas curitibanas. Mas, permaneceu vivo na memória dos que ouviram a sua história e, vez por outra quando passam perto da praça do Atlético, ficam procurando onde era mesmo a tal farmácia do cego das vassouras. Já os mais precavidos, melhor dizendo, os medrosos, evitam passar por aquela região em noites com ventania. Dizem que é possível escutar no zunido do vento o cego gargalhando:

— Vaaaaa soooou raaaa...

28 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page