Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "O Lobisomem da ilha".
O lobisomem da ilha
Ladrões, aventureiros e lobisomens frequentavam a ilha de Valadares a cada mês de agosto. O barulho do vento, a pouca luz e a presença de forasteiros tornavam a noite um espaço de tempo temido e inseguro. Naqueles anos sessenta, quem pudesse, por prudência sairia da ilha em julho e não retornaria antes de setembro.
Ilha de geografia particular, tão próxima quanto distante da terra. Pela face noroeste um simples rio a mantinha separada do continente por poucas braçadas de um bom nadador. Nesse lado da ilha, à noite, as luzes da cidade e do porto no continente se mostravam provocativas para os ilhéus, contrapondo-se a escuridão noturna do lugar. As demais faces da ilha se voltavam para uma imensa Baia salpicada de ilhas, que no breu da noite passavam desapercebidas umas para as outras, cada qual com os seus próprios medos e mistérios.
A imensa Baía com seu porto, em tempos remotos serviu de passagem para navios mercantes e também para os de corsários. Dessa época restaram histórias de piratas e naufrágios. Tesouros enterrados em alguma pequena ilha deserta ou submersos em restos de galeões. Caçadores de tesouro sempre frequentaram a imensa Baía, sendo a primavera e o verão as melhores épocas para mergulhos em naufrágios, quando as águas mornas e mais límpidas permitem boa visibilidade para o mergulhador.
A casa da Alemã fechada a chave indicava já ser agosto. Mulher misteriosa e abastada, seu bolso lhe permitia passar uma temporada fora da ilha todos os anos. Por coincidência, ela nunca estava na ilha quando ocorriam os ataques. Diziam a boca pequena, que o amante, um engenheiro ferroviário, vivia em Curitiba. Cidade grande e charmosa, mas de clima temperamental. Quase sempre frio, chuvoso e sem sol, agosto não costuma ser amigável para passear em Curitiba.
Por ironia ou de propósito, enquanto alguns partiam, outros chegavam. Especialista em mergulhos, o escafandrista frequentava a ilha, sempre e somente, em agosto, mês de águas frias e escuras. Homem de braços musculosos, fortes e peludos, vestia invariavelmente um calção de lycra e camiseta regata. Um par de pé de patos pendurado sobre os ombros e a máscara de mergulho denunciavam sua profissão. Autêntico caçador de tesouros, a imensa Baia era o seu lugar de trabalho e onde buscava riqueza rápida. Homem desconfiado, falava sem olhar nos olhos da pessoa. Entre os moradores da ilha, possuía a má reputação de larápio. Nesses agostos de noites longas e silenciosas, os ilhéus não conversavam sobre seus temores. Nutriam a ilusão que o silencio lhes protegeria dos ataques. Mas, em mês de cachorro louco, em uma ilha superpovoada por cães, o início dos ataques seria apenas questão de tempo. E mesmo sem ter noção exata do perigo, instintivamente os animais se mantinham na mesma espera nervosa dos humanos. Cachorros não saiam de perto de casa, galinhas poedeiras paravam de botar ovos e as poucas cabras deixavam de dar leite. Antes do último raio de sol desaparecer no continente, os moradores entravam em suas casas e passavam à noite trancados com seus cães. Nessas noites medrosas, o som de latidos ou de uivos podia significar o início dos ataques.
Em meio a esse toque de recolher voluntário, a única pessoa com autoridade e valentia suficiente para sair no meio da noite era o Tenente. Ele possuía um vasto repertório de histórias fantasmagóricas e gostava de conta-las para os pescadores da ilha. Em geral, o Tenente sempre se dava bem em suas aventuras. Segundo ele, desafiar o perigo estava em seu sangue. Às vezes, em dias de chuva forte e de mar grosso, atravessava do continente para ilha a nado só por diversão.
Durante o dia, o Tenente trabalhava na delegacia da cidade no continente. Ele morava na ilha com a mulher grávida e mais três filhos, numa casa de madeira, sem sarrafos e cheia de frestas. Construída sobre sapatas altas de tijolos, embaixo do assoalho de tábuas havia espaço suficiente para os cães e as galinhas ficarem na sombra durante o dia e dormirem à noite. O assoalho de tábuas rangia com os passos das pessoas.
Justamente, na noite em que o Tenente estava de plantão na delegacia, a mulher não conseguiu guardar dentro de casa sua cachorra com os dois filhotes pequenos. Mesmo preocupada, preferiu seguir o seu instinto de preservação e se trancou em casa com os filhos para passar a noite. A mulher dormiu preocupada e, mais tarde, acordou com um estranho barulho de tábuas batendo. Primeiro pensou que alguém batia na porta, e depois percebeu que as batidas vinham da parte de baixo do assoalho. O ataque estava ocorrendo sob seus pés. A violência das batidas fletia as tábuas do assoalho para cima e para baixo. Latidos e gritos de animais atacados pela criatura completavam a balbúrdia. O ataque deve ter durado menos de cinco minutos, tempo em que a mulher permaneceu quieta e imóvel.
Ela só teve coragem de sair para o terreiro quando viu pelas frestas da parede que lá fora estava claro. Ao sair encontrou embaixo da casa a cachorra e somente um dos filhotes. E das galinhas só restavam as penas e pedaços dilacerados. A mulher sentiu um arrepio lhe subir pelas costas desde a cintura até a nuca. Então olhou para cima e para sua surpresa a lua cheia ainda estava alta no céu iluminando todo o terreiro. Correu para
dentro de casa e lá se trancou novamente. Suas pernas tremeram de forma involuntária ao ver o relógio marcando duas horas da manhã.
Uma noite terrível não apenas para a mulher do Tenente, mas, para quase todos os moradores da ilha. Como saldo dos ataques, cinco cachorros feridos, outros dois desaparecidos e a maioria das galinhas da ilha estraçalhadas. E em meio ao cenário de terror, a casa da Alemã amanheceu com a porta arrombada e com a suspeita de roubo de grande quantidade de joias. Mas, a Alemã nunca voltou à ilha para confirmar a natureza do roubo. Além disso, foram encontradas marcas de sangue tanto no trinco da porta da casa da Alemã, quanto no trinco da porta da casa do Tenente.
Mesmo cansado, depois de uma noite de plantão com muitas ocorrências criminais e ferido, cortou a mão com um copo de vidro quebrado, o Tenente fez questão de assumir as investigações. A primeira pessoa convocada para o interrogatório foi o escafandrista. E ninguém se surpreendeu dele não comparecer para depor. O homem havia sumido da ilha. Alguns dias depois, um pescador afirmou que viu o escafandrista chegando a nado no continente na madrugada dos ataques. Ele estava com a mão sangrando e carregava uma mochila. Essa foi a última notícia que se teve dele.
Nos anos sessenta os pescadores ainda acreditavam em lobisomens, mas a criatura responsável pelos ataques nunca foi identificada. Contudo, a ciência oferecia soros e vacinas antirrábicas e por segurança sanitária, todos os cachorros da ilha foram sacrificados e seus donos vacinados contra raiva. A ciência também poderia ter ajudado a mulher do Tenente a esclarecer uma grave suspeita que lhe afligia. Mas, naquela época a polícia científica não averiguava a tipagem sanguínea de vestígios encontrados em locais suspeitos de ataque de lobisomem.
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Amei.
Carla Montenegro
Porto Alegre RS