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Foto do escritorAlex Fraga

Crítica/Dança - Permita-se sentir e saborear, por Luiza Rosa

Permita-se sentir e saborear

***Luiza Rosa

“Selvagem” foi a abertura de um processo de investigação artística em dança contemporânea criada pela artista Denise Ortiz, com colaboração da produtora cultural Áurea Novaes, que foi apresentada no último sábado (30), em Dourados (cidade que fica há cerca de 240 Km da capital, Campo Grande), no simpático Studio Tiaki. Houve apenas duas apresentações. Trata-se de um solo, em que Denise gera estados corporais que garantem unidade à sua movimentação, estrutura óssea-musculatura, como se fossem tons musicais que nos remetem a emoções que podem condicionar os relacionamentos. Em um modo muito apropriado de revelar-se através do movimento, Denise nos faz perceber como suas reflexões sobre aquilo que a toca ou impacta podem gerar universos obscuros, se constituir de imagens do outro, como se fossem reflexos e gerar paralisações. Em certo momento, ela coloca um espelho sobre seu rosto e tronco e a plateia é refletida, constituindo parte de sua imagem – uma referência ao trabalho da fotógrafa estadunidense Francesca Woodman. Ao fim, a artista paralisa diante do espelho, que fica sobre o chão, enquanto está em pé olhando para o seu reflexo, que parece projetá-la ao infinito. Em outra instância, no entanto, seu corpo não paralisa, pois vê-se caírem pingos de saliva e suor. Foi possível perceber relações da experimentação artística de Denise com a estética de da artista paulistana Vera Sala, com quem Denise teve contato enquanto cursava a graduação em Comunicação das Artes do Corpo, oferecida pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Isso se percebe devido à utilização do peso de partes do corpo como a cabeça e coluna para conduzir uma movimentação que extrapola o controle da artista sobre direções, ritmos, gerando uma espacialidade sinuosa. Uma das obras conhecidas de Vera Sala é “Estudos para Macabéa” (1999), sua corporificação da protagonista do romance de Clarice Lispector “A hora da estrela” (1977) que, segundo a artista, tem características semelhantes com seu trabalho, como “a perda do limite do interior e exterior, o corpo fragmentado, o tempo esgarçado”. Uma imagem da apresentação de Denise pareceu-me uma citação a “Corpo desconhecido” (2003), da curitibana Cinthia Kunifas. Em colaboração com a Monica Infante, Kunifas criou este trabalho que, por sua pesquisa ter sido contemplada pelo programa Rumos Dança Itaú Cultural, ganhou bastante visibilidade no país. Nos trinta minutos de duração da obra, a artista, que se encontra em pé, vai lenta e quase imperceptivelmente curvando-se em direção ao chão e outros micromovimentos involuntários vão ficando aparentes, como lacrimejamentos e salivamentos, que escorrem para o chão. Em entrevista concedida a Gladis Tripadalli e Cézar Tridapalli, para o projeto “Sujeitos Dançantes”, que foi realizado entre 2012 e 2013, Kunifas explica que uma técnica japonesa de respiração a auxiliou no processo de criação: “eu não sabia o que era energia, eu tenho energia, eu sou energia e posso me mover desse jeito. Nesse momento, um mundo todo se abriu.”. Essa descoberta a fez

superar estruturas enrijecidas corporais, emocionais, de modos de relacionamento, de conceber a dança e a tirou de uma paralisação criativa que já durava 10 anos. Antes, suas referências artísticas que se caracterizavam, basicamente, pela reprodução de padrões pré-estabelecidos, com sequenciamento de passos criados a partir de um tema exterior ao corpo – ela formou-se na Escola do Teatro Guaíra, em Curitiba, e na Joffrey Ballet School, em Nova York. É interessante perceber que tanto no estudo de Denise como no solo de Cinthia Kunifas, existe a busca por um corpo que escapa ao controle e à disciplina. Talvez por isso Denise tenha intitulado sua apresentação de “Selvagem”, porque atua em um limiar entre aquilo que atende às expectativas do que entendemos por civilidade e o que é da ordem do animal, como o desencaixe a certos padrões de comportamento e movimentos involuntários, como excrementos e impulsos emocionais. Uma pena que, em se tratando da escrita que explica do que se trata o trabalho, uma espécie de “sinopse”, a artista apresente um comportamento mais dócil, reproduzindo a maneira como suas professoras da graduação em Comunicação das Artes do Corpo, da PUC-SP, conceituam o que chamam de “teoria Corpomídia”. “Relação corpo-ambiente” é uma frase que foi repetida e reproduzida à exaustão e poderia ter sido apropriada pela artista, que reside a mais de 1.000 quilômetros de distância do polo transmissor dessa ferramenta que exerce uma espécie de doutrinação e se coloca como sendo A explicação a respeito de como funciona o corpo e a construção do conhecimento na dança. Pensando em uma forma de apropriar ou corporificar conhecimentos tão codificados ou em como a relação entre arte e ciência pode ser profícua, suponho que Santo Inácio de Loyola (1491-1556) possa dar um norte, quando diz: “não é o muito saber que sacia e satisfaz, mas o sentir e saborear as coisas internamente.”. Por se denominar “abertura de processo”, acredito que poderia ter havido abertura para ouvir as opiniões do público presente, de modo a contribuir com o andamento da pesquisa de criação, assim como acontece com os chamados “ensaios abertos” de obras tanto do teatro como da dança.


** Esta crítica teve seu texto alterado para preservar as opiniões pessoais da artista Denise Ortiz, quando, na versão original, inadvertidamente, uma fala sua, em discurso direto, foi publicada.


***Luiza Rosa é doutora e mestra em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), com especialização em Dança (UCDB) e graduação em Jornalismo (UFMS).

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