Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de texto/poesia com a poeta e escritora de Campo Grande (MS), Raquel Naveira, com "Culinária e Poesia".
CULINÁRIA E POESIA
Raquel Naveira
Culinária e Poesia. O poeta prepara e oferece pratos de palavras para serem degustadas. Mistura de sabor e saber. Sempre intuí que as cozinheiras eram mulheres sábias, que conheciam os segredos das pessoas, os gostos, os cheiros. Estranhas feiticeiras debruçadas sobre os caldeirões, transformando matérias, criando poções alquímicas, provando a textura dos alimentos. Na fazenda, lá para as bandas da fronteira do Paraguai, era grande e constante o trabalho na cozinha:
Na fazenda
Era duro o batente na cozinha,
De manhã cedo
Arroz carreteiro quente
Que tropeiro não pode ir pro campo de barriga vazia,
Depois o leite vindo do mangueiro,
O requeijão entre sequilhos;
Os restos esquartejados da vaca
Cada qual pro seu destino:
Mocotó pra geleia,
Tripa pra linguiça,
Costela pro forno;
E tem a hora de carregar mate,
De descascar mandioca,
De amassar chipa,
De curar queijo,
De curtir goiaba,
De limpar peixe,
De fazer sabão;
Eterna luta
Com água,
Com fogo,
Com gordura,
Com pena,
Com escama,
Com casca,
Com faca e facão.
Na fazenda
Era duro o batente na cozinha,
Cozinheira tinha sempre peito de tábua,
Mãos com barbatanas
E olhos melancólicos
De quem cria filho enroscado no fogão.
Na fazenda
A padroeira da cozinha
Era Santa Marta,
Quando, de noite,
Chegavam homens a cavalo,
Contando as histórias da cidade
E se aglomeravam no galpão,
Rezava-se pra Santa Marta
Pra que ela garantisse mesa farta
E aplacasse tanta fome,
Tanta sede que se tem nesse mundo.
Na fazenda,
O estômago
Parecia querer devorar o âmago de todas as coisas.
Dia especial era o dia de carnear vaca. Os homens partiam para o campo com seus machados e cutelos.
Era dia de carnear vaca,
Dia de faca,
De matança,
De aves negras,
De céu cruento.
Os homens iam pro campo
Com a promessa da carne
E eu ficava imaginando
As lágrimas saltando dos olhos mansos,
O bicho estrebuchando nos cascos.
Quando voltavam,
O sol ardendo como brasa no crepúsculo,
Carregando fígado e coração,
Encharcados de sangue,
Impregnados de delícia selvagem,
Minha alma se confrangia,
Enquanto, resignada e faminta,
Observava as chamas preparadas
Para o bárbaro banquete.
Lembro-me das mulheres sentadas no alpendre, frente a uma imensa gamela de madeira em forma de cocho. Cortavam a carne em pedaços pequenos, temperavam com sal e limão até cozer e iam enchendo as longas tripas, enrolando pacientemente, furando de leve com espinhos de laranjeira para expelir o ar. Penduravam as linguiças nas ripas, como cobras enroladas. Um sino chamava a família e todos se dirigiam ao alpendre, sob a ramagem de flores roxas, onde ficava uma longa mesa de bancos estreitos e toscos, um de cada lado. Servia-se o almoço: a cabeça inteira da vaca, troféu com os miolos fervendo. Sentia-me meio vicking, mas logo me deliciava com a iguaria. À tarde era hora de fazer doce de caju, de goiaba, de cidra. Doce de leite meio talhado, a cachorrada. Era hora também de amassar chipa de polvilho e queijo; assar bolo de fubá; curar queijo nas formas redondas como luas de prata. Tudo depois era regado com café perfumado, do bule de louça verde. Cheguei a comparar o ato de fazer queijo com o de fazer poesia:
Veio o leite,
Tirado no curral,
Esguichado ao primeiro raio de sol,
Leite de ovelha,
De lívida nata,
Resinoso como seiva de planta,
Soja ou figueira;
A mulher mergulha o coalho,
Talha,
Meio esverdeado,
Cor de mate na cuia;
Separa o soro,
Salga,
Amalgama o conteúdo na forma;
A pasta fermenta
Flores brancas e maturadas,
As ligas se unem,
As fibras se curtem
E rangem;
Vai lavando,
Desdobrando,
Alisando a face de lua
Até dar ponto,
Curado e curtido.
Faço poesia
Que nem queijo.
À noite, jantinha leve: carninha com abóbora vermelha, uns restos de costela e leite com bastante nata, tirado às concharadas da vasilha de alumínio. Depois de tudo lavado e areado com sabão de cinza e pinho, encerrava-se o trabalho na cozinha. Fechava-se a porta com chave e tramela. Eu pensava então, naquele momento de trégua, que, na escuridão, os talheres, pratos, potes, açucareiros, panelas e xícaras, os objetos todos ganhavam vida e conversavam nos armários e nas prateleiras. Às vezes, à meia-noite, apareciam peões, homens vindos a cavalo, da cidade ou de outras fazendas. Era preciso servir mais uma refeição: sopa, arroz virado com ovos caipiras. Minha avó contava a história de Marta e Maria: “_Estando Jesus em viagem entrou numa aldeia e Marta lhe deu hospedagem em sua casa. Tinha ela uma irmã chamada Maria, a qual, sentando-se aos pés do Senhor, escutava-lhe a palavra. Marta, ao contrário, mostrava-se muito
ocupada com o serviço da cozinha e da mesa. Aproximou-se de Jesus e disse: Senhor, acaso não te importas que minha irmã me deixe servir sozinha? Dize-lhe pois que me ajude. Jesus respondeu-lhe: Marta, Marta, tu te afliges e te inquietas por muitas coisas, mas uma só coisa é necessária. Maria escolheu a parte melhor que não lhe será tirada.” A avó ponderava: “Marta é assim o exemplo de mulher ativa, de valor, que cuida das coisas que sustentam o cotidiano, a mulher que nutre a família. Maria era uma mulher que se dedicava à reflexão, à meditação, à oração. Eu, na cozinha da minha casa, sou Marta e peço a Deus que me dê força, saúde, boa vontade para servir minha família e meus hóspedes. Peço também muita fartura para o meu lar.” Olhava para suas mãos rugosas e sentia um grande amor por ela. Era bonito ser Marta, mas eu sempre quis ser Maria.
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