Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de poesia com a poeta e escritora de Campo Grande (MS), Raquel Naveira, com "Praças da minha cidade".
PRAÇAS DA MINHA CIDADE
Raquel Naveira
A praça é um lugar público, herdeira da ágora ateniense, onde aconteciam as decisões políticas. Castro Alves escreveu: “A praça é do povo/ como o céu é do condor”. Espaço com vegetação, árvores, próprio para caminhadas e recreação. Parece distante aquela visão romântica da voz sublime do povo que se elevava nas praças. Mas o elo social se mantém na convivência, no encontro, na cidadania.
Nasci numa cidade verde, de avenidas largas, Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Minha infância foi numa casa assobradada, na rua principal do comércio, a 14 de Julho, em frente à Praça Ari Coelho, nome em homenagem ao médico prefeito assassinado. Havia um caminho que levava aos canteiros de pau-brasil, aos jacarés de papo amarelo, aos cedros gigantes, aos pedregulhos cinzentos, à fonte da praça. Era uma fonte luminosa. Guardo o meu retrato à beira da fonte. E o da minha filha na mesma pose, na mesma idade, na mesma praça. A fonte foi envelhecendo, ficando depredada e decadente:
No meio da praça,
A fonte de pastilhas verdes,
Erguida em dois andares,
Parecia uma taça de sorvete pistache,
Embora ache na minha lembrança
Que era um carrossel de vidro
Girando e escorrendo açúcar,
Neves batidas e claras.
Foi ali,
Apoiada sobre o gradil,
Que me tiraram um retrato:
Daquela criança
Guardei a forma como rio
E o trato amoroso
Com o beiral da fonte.
Ela secou,
Eu sei,
Diferente de árvore,
Sem raízes,
Sem veias,
Secou no azulejo,
No aço,
No fungo,
Nos fios,
Nas lâmpadas.
Secou,
Eu sei,
Diferente de gente,
Sem rugas,
Sem mágoas,
Secou como um charco,
Como um pântano que vira lodo.
Secou,
Eu sei,
Não é árvore, nem gente,
É diferente
Bolo gigante
Que só se acende
Em melancólicas festas da saudade.
Secou,
Eu sei,
Mas mesmo seca
Jorra em golfos na memória.
Por causa desse poema, um jornal local me chamou de “Poeta da Fonte”. Algum tempo depois, a fonte foi restaurada, reinaugurada com grande pompa, mostrando que a poesia move as vontades políticas. E lá estava eu, nos meus vinte e poucos anos, no meio da praça, declamando o poema.
A Praça Cabeça de Boi, rente aos trilhos, encantava com seu coreto antigo. Muitas vezes assisti a bandas uniformizadas de vermelho e dourado, tocando pratos e bumbos que me remetiam a nostálgicos filmes.
Tem um lugar chamado “Cabeça de Boi”,
Uma praça como um coreto
Saído de algum álbum antigo;
Dá para imaginar a banda tocando
Com seu uniforme lustroso
E as pessoas passeando em tom pastel,
Vestindo a palha de seda do domingo.
Nesse lugar deve ter existido um marco,
Uma bandeira de morte,
Uma relíquia presa num arco:
Uma cabeça de boi,
Enorme,
Chifruda,
Causando assombro.
Cabeça de Boi
Lembra matadouro,
Seca,
Terra esturricada,
Rachada,
Regada pelo sangue
Que ela chupa do escoadouro.
Cabeça de Boi,
Terror e prazer de menino
Que brinca com ossos
Sem saber o que são o destino,
A dor,
Os destroços.
Cabeça de Boi....
Olha o boi!
Olha o trem!
Olha nos trilhos
Quanto tempo já se foi.
Hoje uma escultura de araras azuis, vermelhas e amarelas mostra nessa praça um pouco da riqueza do Pantanal. No imenso e moderno Parque das Nações Indígenas, observa-se o pôr do sol, as capivaras entrando no lago e, principalmente, a beleza das flores do cerrado, tão miúdas, verdadeiras joias. Vistas de perto são cheias de cores, desenhos, detalhes. Em frente à praça do mercado municipal, índias ainda debulham milhos e feijões. Vendem seus artesanatos de cerâmica terena, de argila vermelha. A praça construída no antigo Horto Florestal foi palco dos passeios de bicicleta em bando, eu já me sentindo uma mocinha independente, dona de mim, equilibrada sobre duas rodas. Os meus eternos caminhos de bicicleta.
E novas praças e parques se multiplicam pela cidade, pelos seus bairros e condomínios. Às vezes, em sonhos, no meio desses edifícios cinzentos, voo em pensamento até essas praças, onde eu, espírito livre, dava voltas ao mundo sem sair da minha cidade.
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