Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de texto e poesia com a escritora e poeta de Campo Grande (MS), Raquel Naveira, com "Sereias".
SEREIAS
Raquel Naveira
As sereias são criaturas do mar, com cabeça e tronco de mulher e o resto do corpo em forma de peixe. Elas seduzem os navegadores pela beleza do seu rosto, dos cabelos e pelo canto suave e melodioso para, em seguida, arrastá-los para o mar e devorá-los.
Na Odisseia, Ulisses amarrou-se ao mastro de seu navio para não ceder à tentação de seguir o seu chamado. Aconselhou seus companheiros a tamparem os ouvidos com cera para não ouvirem o cântico fatal.
Se compararmos a vida a uma viagem, uma travessia, as sereias poderiam ser comparadas a obstáculos, ciladas nascidas das nossas paixões.
Como vêm do elemento mar, vê-se nelas sonhos fascinantes e aterrorizantes, de amor e morte, nos quais brotam compulsões obscuras e primitivas do homem.
Camille Paglia (1947), professora americana, em Personas Sexuais, explica que “o amor sexual é um mergulho oceânico no atemporal e elemental”. A vida surgiu do mar. Nossos corpos são três partes água e nossas mentes compostas de salgadas luxúrias. O corpo da mulher recende a mar. A secreção genital da fêmea tem odor de peixe. Há um caráter marinho na mulher. Comer uma ostra ainda trêmula é um mergulho bárbaro e amoroso no mar salgado da natureza. Pântano primevo. Êxtase e repulsa.
As sereias simbolizam o desejo que mata e destrói. É preciso, como fez Ulisses, agarrar-se à dura realidade do mastro, que fica no centro do navio, que é o eixo vital do espírito para fugir das perigosas ilusões.
Deborah Goldemberg (1975), escritora paulistana e antropóloga, escreveu Ressurgência Icamiaba. As sereias icamiabas, sereias de água doce, habitantes do rio Tocantins, optaram por “abolir o risco do amor e abraçar uma vida perene”. Baseado em lendas amazônicas, a novela remete ao romance da sereia Kianda com o escravo fugitivo Oxum, em uma trama que aborda temas universais como o amor, o preconceito e a identidade. Um livro cheio de compaixão e esperança.
Neste trecho, a autora nos apresenta as sereias icamiabas que matam os machos que as engravidam, provando que a paternidade é breve, a maternidade é longa. A experiência feminina é submersa no mundo dos fluidos:
Muitos já ouviram falar sobre como funciona o seu cio. Belas como só elas, as fêmeas icamiabas revelam seu torso na superfície do rio mantendo suas coloridas caudas escamadas submersas. Não há caboclo na nação mameluca que não se encante com suas peles jambo-rosa e suas esculturais tranças ebâneas encravadas como flores lilás de mururé. Em meio ao barro fluvial e o verde soturno da floresta elas reluzem como gemas flutuantes, cantam como pássaros e tocam harpas exóticas.
O povo que vive nas margens lamenta pelos caboclos que não resistem aos seus encantos. Mas, como acreditar que estes homens são vítimas se a lenda os avisou sobre elas? Eles optam por entregar suas vidas em nome do prazer sem igual de fecundar uma icamiaba. Morrem felizes, todos eles, afogados em seus braços. Sabendo bem disso, elas se aproveitam e, uma vez fecundadas, retornam à floresta animadas a trocar histórias sobre suas conquistas. Divertem-se contando dos grandes amantes que as fazem gozar ou rindo dos bobos que meramente se afogam- já há entre elas um repertório sobre os machos conquistados.
Pensando em tudo isso, escrevi este poema/canto de sereia:
Vem, meu Ulisses,
Detém teu barco,
Sou sereia sedutora,
Sirena suave
Que atrai para o abismo.
Vem, meu navegante,
Para a minha caverna,
Minha gruta secreta
Onde te devoro
E te encanto.
Vem, meu bravo,
Venceste Troia
Com tua astúcia,
Descansa em minha ilha,
Entre penhascos negros
E precipícios de espumas.
Vem,
Sou sereia,
Cauda de peixe,
Toda vulva,
Estranho molusco
Que te descarna
E te sepulta
Nos baixios do mar.
❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️
Sempre espetacular.. Raquel é simplesmente maravilhosa.
Gisele Dantas - São Paulo SP
Lindo demais!
Margarida de Assunção
Limeira SP