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Foto do escritorAlex Fraga

Texto - Quarto de Artista, por Raquel Naveira



Quinta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de texto com a escritora e poeta de Campo Grande (MS), Raquel Naveira, com "Quarto de Artista".


QUARTO DE ARTISTA

Raquel Naveira


Gosto muito de uma passagem bíblica em que aparece uma mulher sem nome, que morava em Suném, por isso era chamada de “sunamita”. Era rica e importante e tinha um coração sensível. Percebeu que Eliseu não era uma pessoa comum, era um profeta, alguém especial. Disse então a seu marido que construísse para ele um pequeno quarto junto ao muro e que ali colocasse uma cama, uma mesa e um candeeiro para que quando passasse por ali tivesse para onde se retirar. Eliseu certamente se sentiu confortável ao se hospedar naquele quarto exclusivamente preparado para ele. Ali havia o leito para o repouso, a cadeira e a mesa onde o profeta poderia fazer uma refeição frugal, escrever suas cartas e ler mensagens à luz de uma lamparina. E tudo junto a um muro forte, de arrimo e sustento.

Todo artista precisa de um quarto, de um lugar trancado a chave, onde possa produzir, libertar a mente para criar sua obra. Lembrei-me de Van Gogh, o genial pintor impressionista, que em vida experimentou o fracasso e a rejeição. Em 1888 deixou Paris, mudando para o sul da França, onde encontrou um pouco de estabilidade em Arles. Foi ali, quando estava esperando seu amigo, Paul Gauguin, com quem posteriormente se desentendeu, que pintou o quadro “Quarto do Artista em Arles”.

Um quadro tão lindo. Seu próprio ser interior. Um lugar de refúgio. O ventre materno. A janela entreaberta, mas fechada ao mundo exterior por uma densa persiana. A mesa de madeira com vários objetos: jarra de água, copo, escovas. A “cadeira da felicidade”, pintada de amarelo, cor da luz solar. A cama rústica de camponês, onde ele morreu algum tempo depois. A coberta de um vermelho vivo que anima o clima do quadro. As paredes lilases, quase azuis, que fazem contraste com o amarelo. Os retratos acima da cama: um autorretrato, o rosto de uma moça e uma gravura japonesa sobre a cabeceira. Faltou o candeeiro, mas, certamente, as garrafas serviam de castiçais para velas brancas.

Em carta para seu irmão Theo, Van Gogh escreveu sobre sua intenção como artista: “_Desta vez é apenas e simplesmente o meu quarto, só aqui a cor deve fazer tudo e, por sua simplificação, dar um estilo mais grandioso às coisas; aqui ela deve sugerir o descanso e o sono. Resumindo, olhar para este quadro deve descansar a mente, ou melhor,

a imaginação.” Recuperado de um colapso nervoso, Van Gogh afirmou: “_Quando vi minhas telas de novo após minha doença, a que me pareceu melhor foi ‘O Quarto’”.

Felizmente, assim como o profeta Eliseu contou com a generosidade da mulher sunamita, Van Gogh teve tintas e um quarto para se abrigar, graças a Theo, seu fiel irmão.

Virgínia Woolf, a escritora londrina nascida em 1882, dona de personalidade complexa, que alterava momentos de euforia e alegria com outros de profunda depressão, escreveu o romance O Quarto de Jacob. O personagem foi inspirado no seu irmão Jacob Flanders, que morreu muito jovem. Uma personagem que se expressa através do silêncio. Inspirada nesse livro, Vanessa Bell, também irmã de Virgínia, pintou um quadro que nos remete ao aposento de Jacob: o rapaz sentado numa cadeira, sendo observado por uma mulher, uma estante de livros aos fundos. Virgínia escreveu ainda um ensaio intitulado

“Um teto todo seu”, onde afirma que é necessário para uma mulher escrever ficção, um espaço todo seu, um teto. Ali a mulher escreveria sobre qualquer assunto de forma livre, revelando seu potencial.

O meu também é um quarto de artista. Nele me trancafio. Sento-me numa cadeira tão firme quanto o tronco em que o primeiro homem sentou na floresta imemorial. À minha frente. uma mesa como aquela em que se assentaram os filósofos comensais de O Banquete, de Platão; os discípulos na Santa Ceia; os cavaleiros do rei Artur, antes de partirem em busca do cálice do Graal. Uma mesa, uma simples escrivaninha. Sobre ela coloquei um abajur de luz forte, alaranjada, pois gosto de tudo muito claro. Alguns livros confundidos, que podem ser de Virgílio, dos poetas franceses e brasileiros. Capas e miolos abertos. É nesse quarto que vivo com intensidade aquilo que sou: - uma mente estudiosa e cheia de sede.

A criação intelectual provém da criação carnal, como explicou o poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926). É da mesma essência, é uma repetição enlevada e eterna da volúpia do corpo. Sendo assim, há um clima de paixão e noites de amor no meu quarto. Exulto de alegria: tenho um teto, um espaço todo meu. Abro a porta com esforço para encontrar brecha no difícil cotidiano. Penetro na clareira do bosque. Vejo uma fonte, no meio do meu quarto.

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6 Comments

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Guest
há um dia
Rated 5 out of 5 stars.

Lindo texto Raquel! O abajur q ilumina seu local de escritora devolve, com a luz, seus pensamentos voltados a criatividade e nos envia textos encantadores.

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Guest
há um dia
Rated 5 out of 5 stars.

Texto esplêndido, fluindo cristalino, desfilando personagens incríveis e nos conectando com o valor, a beleza e o sentido de suas vidas.

Sim, esplêndido texto, como esplêndido é o secreto céu que nos toma em nossas “redomas”, construídas para nossos sonhos e para “o enlevo de procriar”.

Obrigada Raquel pela luz que sempre acende em nossos corações.

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Guest
há 2 dias
Rated 5 out of 5 stars.

Texto magnífico que flui e nos deixa em suspensos, como se soltos no ar: leves e poéticos. Todo escritor precisa de um quarto para chamar de seu. Que no silêncio encantado de suas paredes vc continue a nos brindar com o presente de suas palavras mágicas. Grande abraço fraterno

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Zé Geral
há 2 dias
Rated 5 out of 5 stars.

Fenomenal, Espetacular, como tudo que escreve… Salve Raquel Naveira!!!

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Elias Borges
há 2 dias
Rated 5 out of 5 stars.

Todos nós precisamos de um aposento particular. Muito interessante, Raquel Naveira, como vc elencou personagens ao longo da história que mostraram sua arte em momentos distintos num lugar assim, cheio de paz e apropriados à criação artística.

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